CONCEDE-ME A VIDA
Solenidade de Nossa Senhora Aparecida
300 anos do encontro da Imagem
Roma, 12/10/2017
“Se ganhei as tuas boas graças e se for do teu agrado, concede-me a vida – eis o meu pedido! – e a vida do meu povo – eis o meu desejo!” (Es 5,3).
As leituras que acabamos de ouvir indicam os passos de nossa meditação. O pedido de Ester: “concede-me a vida!”; o “monstração” do Apocalipse: “ela deu à luz um filho homem”; a “visibilização” de São João: o mestre-sala experimentando a água “que se tinha transformado em vinho”.
À recompensa e oferta recebida, Ester pede a vida pessoal e do povo. Existe algo mais precioso que a vida? Existe algo mais vital, determinante que a vida, a nossa vida? Somos um ser vivo e pertencemos a um povo, a uma comunidade, a uma família. A nossa existência na existência dos outros. Nossa vida pessoal em relação com os outros. Um povo que cuida e recebe cuidado: a experiência da fé pessoal alimentada pela experiência da fé da comunidade, do Povo de Deus, na Comunhão dos Santos.
Ao participarmos da peregrinação, da romaria ao Santuário Mariano com as nossas comunidades, temos a percepção de que as pessoas depositam aos pés de Nossa Senhora o mesmo pedido de Ester: concede-me a vida e a vida de meu povo; concede-me a vida e a vida da minha família. Diante do exílio, da dor e do sofrimento fazem as promessas e os pedidos, oferecem gratidão e reconhecimento. A ela, a Aparecida, entregam o pedido: concede-me a vida e a da minha família, da minha comunidade, da nossa sociedade, da nossa Igreja. Com quanta confiança nossos romeiros e romeiras estão diante da pequenina imagem implorando: concede-me a vida e a do meu povo. Essa imploração soa há 300 anos e vai de geração em geração.
A súplica nasce, brota da Vida que foi dada à luz. Na segunda leitura a Vida vem dada à luz. A luminosidade da vida no nascimento de um filho homem! O filho homem, Filho de Deus, que veio para governar todas as nações, todos os povos. A Vida veio plenificar a vida humana. Ao ser dado à luz, ao vir à luz, trouxe a vida a toda pessoa que vem a esse mundo! A Vida em que tudo veio à luz na criação! Por isso, Aquela que deu à luz ao Filho do homem-Filho de Deus está vestida de sol, tendo a luz debaixo de seus pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas (cf Ap 12,1). Por ela ter dado à luz ao autor da vida resplende de beleza, está coroada pela descendência do novo Povo, recorremos a ela com confiança e repetimos: concede-me a vida do teu filho Jesus, concede a vida plena às nossas famílias, às nossas comunidades, ao Brasil, à nossa Igreja. Conceda a vida que borbulha da fonte do Evangelho.
No Evangelho, a Vida na nossa vida! Nossa transformação em Cristo. A festa das bodas nos conduz para a responsabilização pela vida concedida e a transformação!
As Bodas são sinal do entrelaçamento da vida, da entrega, da partilha, da comunhão, da expansividade do amor. A vida é gerativa, é para os outros. Vida que é vida é irradiação, pois encontro. Encontro expansivo, encontro com o outro. Encontrados!
Encontro: celebração da vida! Vida gerativa. Assim no Evangelho fomos convidados a encher as talhas existenciais. Encher “até a boca”, isto é, generosamente, graciosamente, gratuitamente, no extravasamento. Vida que é Vida em abundância é fontal: incansável, sem por que, nem para quê. Ir até a Fonte do Filho que foi dado à luz e encher as talhas existenciais com os cântaros do serviço desprendido e generoso.
E qual a surpresa da busca das águas da Fonte?: transformação! Sim, água em vinho. Da água buscada, trabalhada, infatigavelmente vem uma transformação. Graças a Deus que a transformação é graça imperceptível. A santidade nasce da Fonte das águas. É a Fonte que transforma, transfigura em santidade os nossos dias, as nossas pessoas.
Percebemos que as água da fonte que é Jesus abre os sabores da vida. Vamos devagar percebendo melhor o sabor da vida do Evangelho no modo de viver como cristãos. Vamos distinguindo cada vez melhor o vinho novo do vinho velho. Vamos deixando a superficialidade de nós mesmos e deixamo-nos tomar pelas profundezas, largas e abundâncias da vida de Deus.
Caminhar até a Fonte da Vida é receber o convite do serviço: “agora tirai e levai ao mestre-sala”. Talhas cheias, prontas para serviço. A vida é para os outros! Servir! Ao celebramos hoje os 300 anos do encontro da imagem da Imaculada nas águas do Rio Paraíba do Sul somos lembrados que os pescadores foram em busca de alimento não para eles mesmos, mas para as visitas. No serviço receberam a manifestação de Deus. E não tudo de uma vez, aos poucos em pedaços, “um mistério que aparece incompleto”, mas “esperam a plenitude. E esta não demora a chegar”. (Papa Francisco aos Bispos do brasil, JMJ, 2013). “Como as partes de um mosaico” encontram um todo. Ao buscarem a unidade entre as partes recebem a beleza do encontro da imagem que permanece como sinal da proximidade de Deus. Sinal e proximidade que cresceu de geração em geração até os nossos dias.
Sim, as Bodas de Caná fazem memória da grandeza da nossa vida. Existimos para servir, um serviço gerativo! Somos servidores e servidoras da vida. Acolhendo a pequena imagem, a Maria geradora da Vida, somos enviados para gerar vida, gestar vida, dar à luz à Vida. Quantos necessitados hoje no corpo e no espírito? Quantas pessoas desenraizadas pela migração, quantas pessoas abandonadas na idade, quantas crianças maltratadas, quantas pessoas que vivem pelas ruas de nossas cidades, quantos homens e mulheres nas prisões à espera da misericórdia? Nossa Senhora hoje nos diz: “eles não têm mais vinho”, como se nos dissesse, acabou para eles o banquete da vida, chegaram ao fim da linha. E buscamos em Jesus, nossa Fonte, gestos, palavras, proximidade e os devolvemos ao banquete da vida. Talvez, as palavras de São Gregório Magno nos ajudem na nossa meditação: quem são aqueles que estão sem as vestes nupciais? Eles têm fé; é a fé que lhes abre a porta, mas estão sem as vestes da caridade, isto é do amor em movimento.
Somos pessoas, cristãos “capazes de aquecer o coração das pessoas, de caminhar na noite com elas, de dialogarem com as suas ilusões e desilusões, de recompor as duas desintegrações”? “Faz falta uma Igreja que não tenha medo de entrar na noite” (Papa Francisco aos Bispos do Brasil, JMJ 2013) das pessoas, da nossa sociedade, do nosso Brasil. A Celebração dos 300 anos nos move ao encontro da essência do Evangelho, da fonte da nossa Vida: a misericórdia feita serviço.
Ao celebramos os 300 de um encontro, somos provocados e convocados a rezar pelo Brasil. Vivemos um momento crítico, quase de desesperança. A crise maior não é econômica, política, mas ética. Perdemos os parâmetros da dignidade, da justiça, da equidade, da democracia, da fraternidade. Fomos assaltados pela violência das armas, pela corrupção, pela política das negociatas e do proveito grupal e próprio. Somos provocados, na celebração dos 300 anos do encontro da imagem da Mãe de Deus e Nossa, a “albergar o mistério” da vida, a levarmos ao coração da sociedade brasileira esse mistério que é Jesus. Dizia o Papa Francisco aos Bispos durante a JMJ no Rio de Janeiro: “na casa dos pobres, Deus encontra sempre lugar”. Na casa dos pobres onde existe solidariedade, serviço, artilha, perdão, reconciliação pode renascer a ética. Ela gera relações novas, desperta a responsabilidade social e política. Ela guia pelos caminhos da superação do mercado para encontrar pessoas.
A Vida que é a misericórdia manifestada no milagre das águas guie nossos passos na edificação de um Brasil justo, solidário, fraterno, ecológico, reconciliado.
Concede-nos, ó Mãe Aparecida, a vida! Concede a vida ao povo Brasileiro, às nossas famílias. Concede-nos a graça de sermos servidores e servidoras da vida, missionários que levam a vida que é Jesus, para que todos tenham vida em plenitude. Amém.
+Leonardo Ulrich Steiner
Bispo Auxiliar de Brasília
Secretário Geral da CNBB